terça-feira, abril 18, 2006


Lisboa, 1506

Entre 19 e 21 de Abril de 1506, morreram em Lisboa cerca de quatro mil pessoas, chacinadas por uma turba manipulada e enlouquecida. Manipulada por fradaria inculta e torcionária. Enlouquecida pela violência, pela histeria da manada, pelo cheiro do sangue que corria livre pelas ruas e dos corpos queimados nas fogueiras do Rossio. As vítimas eram cristãos-novos, homens, mulheres e crianças, todos pecadores por graça da intolerância.

Pouco reza a História desse massacre. Nas páginas dos manuais, quando muito um rodapé. Na memória colectiva, um desconhecimento quase absoluto. E, no entanto, foi uma das maiores tragédias da nação. Uma perda de saberes e de sabores, de conhecimento e de iniciativa, rude machadada na riqueza lusa e nas suas hipóteses de crescimento pela modernidade.

O Nuno Guerreiro evocou este quinto centenário e sugeriu uma cerimónia de lembrança: quatro mil velas acesas no Rossio, em 19 de Abril, em memória das vítimas do progrom de Lisboa. O que reiterou nos dias seguintes, com a publicação de sucessivos testemunhos. No geral, a blogosfera, sempre tão vaso-comunicante, reagiu com um silêncio tumular, tanto à evocação como à proposta, o que levou Lutz Brückelmann a lançar o desafio dos porquês. Penso que saiu magoado da empresa, mas gostaria de lhe dizer que valeu muito a pena, pelo que trouxe à divulgação da iniciativa. E o machucado é amiúde a medalha dos probos.

Parece relevar para a abstenção ou oposição de muitos em relação à iniciativa, tanto da evocação como da cerimónia, o facto de as vítimas serem judias. O que se deve pouco a anti-semitismo atávico, em que francamente não acredito, mas a actuais clivagens boçais de esquerda e direita, que associam os judeus ao "eixo do mal" norte-americano e a nação árabe à aldeia gaulesa resistente ao agressor. A estultícia do europeu "bem pensante", que canoniza o medo em nome do respeito pelas culturas alheias, se tolhe borrado perante a ameaça e faz por ignorar o inaceitável para não ser politicamente incorrecto, nunca deixará de me surpreender. O horror não tem raça, credo, ou condição. O passado morre quando o ignoramos e as quatro mil vítimas de 1506 merecem a dignidade da nossa lembrança. E se a lembrança fizer hesitar um eventual futuro algoz, por aí disponível para nova excitação colectiva de ódio, a vida salva será a maior homenagem às então perdidas.

Quanto à forma, que, aparentemente, distancia alguns da manifestação, é natural que o simbolismo das velas não seja unânime. Para a civilização ocidental, ateia e detentora de um elevado cinismo anticlerical, a estearina tende a evocar beatice, crendice, ratice de sacristia. No entanto, poucas imagens serão tão fortes como a da luz bruxuleante de quatro mil velas acesas no lugar do morto. E simples de utilizar, já que quatro mil sabres laser estão um pouco fora de questão.

Repudiar a iniciativa pela sua forma é mera evasão. Homenagear os mortos de 1506, lembrando-os na memória dos presentes, tem de ser um acto colectivo, por muito que isso custe numa época em que a única convicção que nos permitimos é a da nosso desprendimento. Aux bougies, citoyens!